A escuta e a alteridade como primeira proposta de inversão.
*texto apresentado na mesa-redonda: Ñande Jaguata: saberes indígenas, psicologia e autonomia. No III Seminário Sobre as Questões Indígenas.
Boa noite,
Primeiramente gostaria de saber quais são os campos de saberes e
cursos das pessoas que estão na plateia, sei que tem pessoas do curso de
Psicologia, mas quais as outras áreas de saberes que estão aqui?
Assim, minha fala irá transitar aos ouvidos de alguns como algo
interessante, instigante e curioso, mas para alguns, poderá soar com ares de
incomodo e estranhamento. Mas, acredito que este é o cerne do debate cientifico,
ou mesmo, o movimento de alteridade no campo científico.
Quero agradecer o convite para estar nessa mesa, junto com os
professores Joaquim e Eliezer, que ultimamente vem me ensinando muito sobre
muitas coisas. Sobre a vida, sobre a minha condição como pessoa, psicólogo e
pesquisador.
Como o
convite veio com o objetivo que eu fale um pouco da minha experiência e meus
estudos no campo da questão das sociedades ameríndias, que se iniciou em 2009 e
acredito que deve ter seu termino no meu ultimo ato de respirar. Sendo assim,
vou parafrasear um professora que ao participar da banca de mestrado de um
Guarani, disse que estava se sentindo uma formiga feliz, e é desta forma que
encaro e vivo meu trabalho. Como uma formiga feliz.
Neste
anos ouvi e ouço muitas coisas em relação a questão dos povos ameríndios, mas
entre estas coisas apreendi algo especial e que abre a minha fala neste mesa.
Um dia um Guarani me disse que se sentia muitas vezes como um objeto de estudo
aos olhares e as palavras de muitos. E isso soou como um eco perceptível
fundamental que amplia cada vez mais o meu olhar, o meu ouvir e o meu pensar,
ou melhor, o meu caminhar junto aos povos ameríndios.
Ninguém é objeto de estudo de ninguém, todos
somos sujeitos em estado de vida, dentro de uma complexa e sensível organização
viva. Que podemos chamar de alteridade radical. Tanto que no trabalho de
pesquisa, o pesquisador se torna pesquisado e o pesquisado se torna
pesquisador. Como um constante jogo de espelhos, que bem afinados lembra o som
de um acordeom e um violão de sete cordas, que improvisando os dois chegam a um
belo produto final, a musica.
Ñande
Jaguata, uma frase em Guarani que quer dizer Nós Caminhamos. Frase que
explicita e deixa bem claro aos ouvidos atentos de quem se permite ouvir, o que
reflito sobre o posicionamento da psicologia quando move suas reflexões e a
práticas com os povos ameríndios. Neste sentido as palavras junto, com e ao
lado, soam como um movimento ético politico, precisamente sensível e arduamente
organizado entre o saber e o fazer.
Caminhar com o Outro, junto ao Outro e ao lado do Outro, se
torna o movimento que organiza a condição humana e as produções de saberes e
fazeres, que ao meu ver, se move como sentido de inversão da própria
psicologia. Mas o que é esta inversão? Muitos devem esta se perguntando.
A inversão pode ser entendida como um movimento teórico e
prático que hoje se desenvolve em muitos campos de saberes, quando se torna necessário
rever os cânones e as logicas teóricas que inventa uma ciência, ou mesmo que
inventa noções logicas como realidade.
Quando a ciência reconhece no reflexo do espelho, a sua imagem e
a imagem de infinitas Outras ciências, e a partir disso, se vê obrigada a descontruir
seus sentidos de onipotência e percebe que ela não esta sozinha no mundo.
Existe muitas outras ciências, tão complexas e densamente rebuscadas como ela,
com suas próprias epistemologias e cosmologias construída historicamente e mais
antigas que a própria ciência.
Pois,
quando um dia me perguntaram qual é o mito de criação da nossa sociedade? Respondi
que é o mito do capitalismo, que tem como pai celestial o positivismo. Mas
porque? Porque é deste mito que muitas ciências ocidentais, constrói e inventa
a realidade. O que permite entender que nossa sociedade tecnológica, cientifica
e capitalista, possui também uma cosmologia. Uma ciência construída a partir de
interações e instabilidades da organização social de quem ela mesma é tanto
filha, como pai e mãe.
Há três
anos atrás fui convidado para participar de uma mesa, e no decorrer da minha
fala, defendi que a psicologia tem muitas vezes um papel colonizador quando se
depara com os povos ameríndios. Fala que me custou ouvir algumas educadas
ofensas. Mas, como as vezes são essas ofensas, que me ativa e me potencializa,
a eu me debruçar cada vez mais no meu trabalho. Expresso a necessidade de
pensar e construir uma psicologia para além da psicologia. Uma psicologia que
precisa descolonizar o que ela inventa como sendo o Outro.
Movimento
de esforço que reconheço hoje: nos campos de saberes interdisciplinares, na antropologia,
da educação intercultural, na literatura latino-americana, nas reações dos
saberes e fazeres ecológicos e em trabalhos árduos que buscam descontruir a
naturalização de muitos sentidos da sociedade, como as noções de
desenvolvimento, progresso, ordem e riqueza.
Sempre me pergunto: até que ponto o que eu escrevo é uma
invenção, ou uma ficção do Outro, ou é uma possibilidade de reflexão dialógica
com o Outro, um espaço como uma terceira via, uma possibilidade de construir
saberes e fazeres com o Outro? Acredito que esta é uma pergunta que não tem
presa para ser respondida, pois ela me nutri e me organiza.
Alguém neste momento deve estar se perguntando: quando ele vai
falar sobre alguma possibilidade prática de campo para a psicologia com os
povos ameríndios? Então, respondo, sem ainda ter uma resposta, que a primeira reflexão,
ou o primeiro movimento, que pode ser erguido é a própria Escuta. E outra
pessoa deve ter se perguntado agora: mas esse negocio de Escuta a gente já
apreende no curso de psicologia? Então pergunto: Como vocês escutam? Como vocês
estão escutando o Outro?
Escutar exige o esforço intelectual e sensível da alteridade, do
respeito e do convívio com o Outro. Dificilmente escutamos o Outro quando temos
muitas e muitas coisas esfumaçando nossos olhos, ou nossas mentes. Se torna
necessário apreender com o Outro, tirar os óculos borrados dos nossos rostos e
se deparar com o rosto do Outro, encarar de forma realista que existe o Outro
diferente do que você entende como realidade, sabendo, que a realidade é muitas
vezes construída por canais imaginários.
Por conta da minha experiência de campo, de reflexões, de
construção de saberes e fazeres, de tristezas, de alegrias e principalmente de
me esforçar para cotidianamente ampliar meu campo de visão, e saber que o
trabalho é algo construído continuamente. Trago a reflexão da Escuta como
possibilidade de estar com, ao lado e junto com o Outro. E buscar refletir sobre
os saberes e os fazeres, no sentido de tomar cuidado quando se encara a
psicologia como um saber e um fazer que atravessa forçosamente outros saberes
com logicas que inverte e questiona muitas vezes o que a psicologia pensa sobre
as coisas humanas.
Por isso, ultimamente algumas das minhas reflexões sobre a
psicologia e seu trabalho com as sociedades ameríndias, estão atreladas na
pergunta: até que ponto a psicologia busca nos territórios ameríndios somente
problemas, e desenvolve saberes e fazeres que constrói problemas embasados pelo
discurso psicológico?
Pergunta que me faz inverter um pouco este movimento, que ao
invés de procurar problema, pode-se erguer, ativar e potencializar soluções que
já existem, que existem pelo próprio território, pelo conhecimento, pela
ciência e pela cosmologia existente nesses territórios. Pela grande riqueza de
saberes e fazeres existentes nesses territórios.
Penso que a psicologia deve ser uma aliada e pensar a própria
psicologia no sentido da autonomia das sociedades ameríndias. De ouvir,
observar, respeitar, apreender e pensar junto com as sociedade ameríndias. No
inicio desse ano ouvi a fala de um Guarani em uma evento internacional de saúde
coletiva, ele disse: que a sociedade envolvente, a sociedade ocidental precisa
antes de tudo entender que é ela precisa apreender com as sociedades
ameríndias.
Yan Leite
Chaparro
Campo
Grande, MS. 22 de abril de 2016
Fala apresentada na faculdade Unigran Capital.
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